A emoção é como um pássaro,
quando se prende já não canta

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Morangos à beira do abismo

Um homem ia feliz pela floresta quando, de repente, ouviu um urro terrível.
 Era um leão. Ele teve muito medo e começou a correr.
 O medo era muito, a floresta era fechada.
 Ele não viu por onde ia e caiu num precipício.
 No desespero agarrou-se a uma raiz de árvore, que saía da terra.
 Ali ficou, dependurado sobre o abismo. De repente olhou para a sua frente:
 na parede do precipício crescia um pezinho de morangos. 
Havia nele um moranguinho, gordo e vermelho, bem ao alcance da sua mão.
 Fascinado por aquele convite, para aquele momento, 
ele colheu carinhosamente o moranguinho, esquecido de tudo o mais
. E o comeu.Estava delicioso!
 Sorriu, então, de que na vida houvesse morangos à beira do abismo... 

Rubem Alves

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Fragmento

Tela de Bryce Cameron
Pessoas que já sofreram são perigosas. 
Elas sabem que podem sobreviver!
 
Anna Barton

Dia Branco

Tela de Maxfield Parrich

Dai-me um dia branco,
um mar de beladona
Um movimento
Inteiro, unido, adormecido
Como um só momento.
Eu quero caminhar como quem dorme
Entre países sem nome que flutuam.
Imagens tão mudas
Que ao olhá-las me pareça
Que fechei os olhos.
Um dia em que se possa não saber.

Sophia de Mello Andresen

A Cria

Tela de Sally Swatland
O olho claro é a coisa mais bonita em você. 
Quem dera enchê-lo de patos e cores, 
Zôo do novo, 
Nomes em que você pensa – 
Campânula-de-abril, Cachimbo-de-índio, 
Pequenino 
Caule sem espinhos, 
Lago em cujas margens, imagens 
Pudessem ser clássicas e imensas 
Não esse tenso 
Torcer de mãos, esse teto
Escuro e sem estrela.


Sylvia Plath

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Aconchego


Abra os teus braços como asas
Que eu quero me aconchegar.
Teu ninho porejado de pragas
Rescende a palha seca e rançoza
Desfaz-se ao vento daninho
Levando em rodopio teu lar.

Fica comigo e te darei carinho
Frescor e um suave manto de rosas
Para juntos, outro ninho formar 

Helena Frontini

O sono das águas

Há uma hora certa,no meio da noite,
uma hora morta,em que a água dorme.
Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d'água,
nos grotões fundos
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir...
Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas da folha
geme adormece.
Até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes...
Mas nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono...


Guimarães Rosa

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Fragmento

Tela de Sally Swatland
"Diego não conhecia o mar. 
O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. 
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia,
depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos.
E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor,
que o menino ficou mudo de beleza.
E, quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando,
pediu ao pai: 
ME AJUDA A OLHAR!"

Eduardo Galeano
em > O livro dos abraços

O banho de shampoo

Tela de Robert Fowler

Os liquens - silenciosas explosões
nas pedras - crescem e engordam,
concêntricas, cinzentas concussões.
Têm um encontro marcado com
os halos ao redor da lua, embora
até o momento nada tenha mudado.
E como o céu há de nos dar guarida,
enquanto isso não se der,
você há de convir, amiga,
que se precipitou;
e eis no que dá. Porque o Tempo é,
mais que tudo, contemporizador.
No teu cabelo negro brilham estrelas
cadentes, arredias.
Para onde irão elas
tão cedo, resolutas?
- Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nessa bacia
amassada e brilhante como a lua.

Elizabeth Bishop


De mãos dadas com minha infância

Tela de Bryce Cameron

Eu te pressinto correndo ao meu lado
e te admiro. 
Gosto de teu sorriso sem conflito, 
tua trança
que balança frouxa contra o vento. 
Acostumei-me a te levar comigo
pelos meus sucessos
e nos contratempos. 
Eu me desculpo pelos meus excessos. 
Há espaço pra nós duas, 
suficiente
para poder te manter irreverente, 
apoiada na minha metade equilibrada. 
Assim me encosto
na textura sem rugas de teu rosto. 
Se houver um quase nada
de divergência, 
é melhor prevalecer a tua inconseqüência, 
que é o nosso lado mais sadio. 
Se por acaso houver um desafio, 
há de vencer-me a ingenuidade
que evaporou no tempo, 
que descorou nos tons da meia-idade. 
Mas, quando um dia confrontarmos
nossas diferenças, 
quero que se sobreponha
por sobre minha face mais tristonha
a tua liberdade mais traquina. 
Eu te dou a mão num gesto de ternura, 
porque te quero sábia, 
porque me quero pura. 
Meio mulher madura, 
meio menina. 


Flora Figueiredo

Fragmento

Tela de Bryce Cameron

"... Essa vaga doçura fez o meu coração doer de saudade. 
Pareceu-me ser o sopro ardente no verão, procurando completar-se. 
Eu não sabia então, que a flor estava tão perto de mim.
Que ela era minha, e que essa perfeita doçura
 tinha desabrochado no fundo do meu próprio coração. "

Tagore

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

São duas ou três coisas

Tela de Konstantin Razumov
São duas ou três coisas que eu sei dela,
e nada mais além de seu perfume.
Sei que nas noites ermas ela assume
esse ar de quem flutua na janela,
como o duende fugaz que em si resume
um tempo que a ampulheta não revela:
o tempo além do tempo que só nela
navega mais que o peixe no cardume.
Sei que ela traz nos olhos esse lume
de quem sofreu e a dor tornou mais bela,
pois o naufrágio lhe infundiu aquela
vertigem que do alfanje é o próprio gume.
Sei que ela vive no halo de uma vela,
e queima, sem consolo, em minha cela.

Ivan Junqueira

Da meia idade

Da meia-idade

A rapariga na casa de chá
não é tão bonita como era,
o agosto já a gastara.
Já não sobe as escadas tão depressa;
sim, também ela se aproxima da meia-idade,
e o brilho da juventude que ela espalhava sobre nós
quando nos trazia os bolos secos
já não se espalhará mais sobre nós.
Também ela se aproxima da meia-idade.

Ezra Pound
(trad. de José Palla e Carmo)

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Cintilância

Tela de Bryce Cameron
Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
ao invés de ganir diante do Nada.

Hilda Hilst

Que este amor

Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba. 
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas. 

Que este amor só me veja de partida.

Hilda Hilst

Estrelas

Tela de Kosntantin Rasumov

Quando no céu as estrelas
deixam o firmamento
e vão a dormir de dia,
as estrelas da água acolhem
o céu enterrado no mar
inaugurando os deveres
do novo céu submarino.

Pablo Neruda

Das estrelas que admirei

Tela de Washington Maguetas


Das estrelas que admirei,
molhadas por rios e rocios diferentes,
eu não escolhi senão a que eu amava
e desde então durmo com a noite.

Pablo Neruda




Quero fazer contigo o que a primavera...

Tela de Washington Maguetas

Quando não te doeu acostumar-te a mim,
à minha alma solitária e selvagem,
a meu nome que todo afugentam.
Tantas vezes vimos arder o luzeiro
nos beijando os olhos e sobre nossas cabeças
destorcer-se os crepúsculos em girantes abanos.
Sobre ti minhas palavras choveram carícias.
Desde faz tempo amei teu corpo de nácar ensolarado.
Chego a te crer a dona do universo.
Te trarei das montanhas flores alegres,
copihues, avelãs escuras, e cestas silvestres de beijos.
Quero fazer contigo o que a primavera faz com as cerejas.

Pablo Neruda

Coreto de Campinas


Coreto de Campinas - pintura de
Washington Maguetas

Cancioneiro português

Ao passar a ribeira grande pus o pé 
Molhei a meia ,pus o pé, molhei a meia
Minha sogra morreu ontem enterreia-a na banheira
Deixei-lhe um braço de fora para a velhe fechar a torneira
Minha sogra morreu ontem enterrei-a na salgadeira ,
como carne todo ano e a velha está sempre inteira 

in cancioneiro popular português

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Beira-mar



Sou morador das areias
De altas espumas
Os navios passam pelas minhas janelas
Como o sangue nas minhas veias
Como os peixinhos nos rios,
Não tem velas, e tem velas
E o mar tem e não tem sereias
E eu navego, e estou parada
Vejo mundos e estou cega,
Porque isto é mal de família
Ser de areia, de mar, de ilhas
E até sem barco navega
Quem para o mar foi fadada,
Deus te proteja Cecília
Que tudo é mar - e mais nada

Cecília Meireles
in Mar absoluto

Vinde oh anjos

Vinde, ó anjos, com as vossas espadas,
as vossas espadas e as vossas balanças,
para pesar estas vidas pesadas
de tristes sonhos, mas não de esperanças.

Vinde com as vossas estrelas e flores
enfrentar animais flamejantes.
Ai! que campinas só de desamores,
que universo de só desamantes! 

Cecília Meireles

Se o amor...

Se o amor ainda medrasse,
aqui ficava contigo,
pois gosto da tua face,

desse teu riso de fonte,
e do teu olhar antigo
de estrela sem horizonte.

Como, porém, já não medra,
cada um com a sorte sua!

(Não nascem lírios de lua
pelos corações de pedra...)

Cecília Meireles

Frase


“Ter um filho é como fazer uma tatuagem na cara.
 Você precisa realmente ter certeza de que é isso que você quer
 antes de se comprometer.”

Elizabeth Gilbert
do livro "comer, rezar, amar"

Fragmento




"(...) Quando a gente percebe, 
já é noite e o céu, se está disposto a falar, diz estrelas. 
Quando a gente percebe,
as pétalas já descansam o seu sorriso no colo do chão. 
Quando a gente percebe, o canto da onda já enterneceu a areia. 
Muitas dádivas que nos encontram, que nos encantam, 
têm seu tempo de viço, 
sua hora de recado, 
e seu momento de transformação 
em outro jeito de lindeza. (...)"

Ana Jácomo

Frase

Não gosto desse passarinho.
 Não gosto de violão.
 Não gosto de nada que põe saudades na gente.

Guimarães Rosa

Texto



Quem você pensa que é?"
perguntou pra mim de queixo em pé...
Sou forte, fraca, generosa, egoísta, angustiada,
perigosa, infantil, astuta, aflita, serena, indecorosa,
inconstante, persistente, sensata e corajosa,
como é toda mulher,
poderia ter respondido,
mas não lhe dei essa colher.



Martha Medeiros

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Poemeto

Tela de Sally Swatland
Deus dá a todos uma estrela.
Uns fazem da estrela um sol.
Outros nem conseguem vê-la"

Helena Kolody

Compro um barco cheio de vento

Tela de Sally Swatland

Compro um barco cheio de vento
com velas cor do firmamento
e uma bússola que aponte sempre
para as luas de saturno.
Compro um barco que conheça
caminhos secretos de mares desconhecidos.
Um barco feito de vento
onde caibam todos os meus amigos.
Compro um barco que saiba decifrar
os segredos escondidos
no coração das noites sem luar.

Roseana Murray


Simplicidade


Tudo o que é belo tende a ser simples. Afirmação generalizante? Não sei. O que sei é que a beleza anda de braços dados com a simplicidade. Basta observar a lógica silenciosa que prevalece nos jardins. Vida que se ocupa de ser só o que é. 

Não há conflito nas bromélias, não há angústia nas rosas, nem ansiedades nos jasmins. Cumprem o destino de florirem ao seu tempo e de se despedirem do viço quando é chegada a hora. São simples. 

Não querem outra coisa, senão a necessidade de cada instante. Não há desperdício de forças, não há dispersão de energias. Tudo concorre para a realização do instante. Acolhem a chuva que chega e dela extraem o essencial. Recebem o sol e o vento, e morrem ao seu tempo. 

Simplicidade é um conceito que nos remete ao estado mais puro da realidade. A semente é simples porque não se perde na tentativa de ser outra coisa. É o que é. Não desperdiça seu tempo querendo ser flor antes da hora. Cumpre o ritual de existir, compreendendo-se em cada etapa. 

Já dizia o poeta: "Simplicidade é querer uma coisa só". Eu concordo com ele. O muito querer nos deixa complexos demais. Queremos muito ao mesmo tempo, e então nos perdemos no emaranhado dos desejos. Há o risco de que não fiquemos com nada, de que percamos tudo. 

Aquele que muito quer corre o risco de nada ter, porque o empenho e o cuidado é que faz a realidade permanecer. O simples anda leve. Carrega menos bagagem quando viaja, e por isso reserva suas energias para apreciar a paisagem. O que viaja pesado corre o risco de gastar suas energias no transporte das malas. Fica preso, não pode andar pelo aeroporto, fica privado de atravessar a rua e se transforma num constante vigilante do que trouxe. 

A simplicidade é uma forma de leveza. Nas relações humanas ela faz a diferença. O que cultiva a simplicidade tem a facilidade de tornar leve o ambiente em que vive. Não cria confusão por pouca coisa; não coloca sua atenção no que é acidental, mas prende os olhos naquilo que verdadeiramente vale à pena. 

Pessoas simples são aquelas que se encantam com as coisas menores. Sabem sorrir diante de presentes simbólicos e sem muito valor material. A simplicidade lhe capacita para perceber que nem tudo precisa ter utilidade. E por isso é fácil presentear o simples. 

Dar presentes aos complicados é um desafio. Não sabemos o que eles gostam, porque só na simplicidade é possível conhecer alguém. Só depois que as máscaras caem pelo chão e que os papéis são abandonados a gente tem a possibilidade de descobrir o outro na sua verdade. 

Eu gostaria de me livrar de meus pesos. Queria ser mais leve, mais simples. Querer uma coisa só de cada vez. Abandonar os inúmeros projetos futuros que me cegam para a necessidade do momento. Projetos futuros valem à pena, desde que sejam simples, concretos e aplicáveis. Não gostaria que a morte me surpreendesse sem que eu tivesse alcançado a simplicidade. Até para morrer os simples têm mais facilidade. Sentem que chegou a hora, se entregam ao último suspiro e se vão. 



( Padre Fábio de Melo )