A emoção é como um pássaro,
quando se prende já não canta

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Fragmento

Tela de Chris Lewis
"A primavera já está a acender as suas árvores. 
Põe qualquer coisa como uma flor 
em qualquer lugar como uma lapela 
e sai de assobio para a rua. 
Sê atrevido - 
e levanta, e plante , 
a tua própria árvore 
nem que seja só em imaginação, 
nos sítios mais inesperados ." 

Alexandre O'Neill

Úmido

Tela de Jean Ferdinand Chaigneau



ÚMIDO gosto de terra,
cheiro de pedra lavada
— tempo inseguro do tempo! —
sombra do flanco da serra,
nua e fria, sem mais nada.
Brilho de areias pisadas,
sabor de folhas mordidas,

— lábio da voz sem ventura! —
suspiro das madrugadas
sem coisas acontecidas.
A noite abria a frescura
dos campos todos molhados,

— sozinha, com o seu perfume! —
preparando a flor mais pura
com ares de todos os lados.
Bem que a vida estava quieta.
Mas passava o pensamento...
— de onde vinha aquela música?
E era uma nuvem repleta,
entre as estrelas e o vento.

Cecília Meireles

sábado, 17 de setembro de 2011

Amigos, grata pelas visitas e pelos gentis comentários

Manhã portuguesa

Debruçada na janela,
e embevecida pela
paisagem matinal...
O sol anúncia sua 
presença,ao 
pincelar de dourado 
o verde-musgo da alfarrobeira.
O sonho é real,com canto 
de pássaros, cheiro de café 
e pão na torradeira.

Vera Queiroz

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Alfabeto



É muito útil estudar
o alfabeto das flores miúdas
esquecidas na beira dos caminhos.
Pequenas florezinhas amarelas
como mensagens perdidas.
Elas dizem sim à vida, ao Sol,
à chuva, sim ao amor que nasce
todos os dias, invisível,
e com sua luz ilumina a Terra.

Roseana Murray

Seu cabelo está cheiroso

Tela de Hua Chen
Seu cabelo está cheiroso, Pinny, 
falei, aspirando o perfume dos cabelos louros recém-lavados. 
Com cheirinho de sabonete. 
_ E o meu olho?, ela perguntou, 
aconchegando seu corpinho aquecido pela camisola em meus braços. 

_ O que tem seu olho? 
_ Também está cheiroso? 
_ Por que o olho estaria cheiroso? 
_ Entrou sabão nele, ela explicou. 

Diários de Sylvia Plath

Aposto

Waterhouse
Eu preferirei sempre aqueles que sonham...
embora se enganem;
aqueles que esperam...
embora, às vezes, suas esperanças fracassem;
aqueles que apostam na utopia...
embora, em seguida, fiquem no meio do caminho.
Aposto nos que confiam em que
o mundo pode e deve mudar;
naqueles que acreditam que a felicidade virá.
Só daqueles que esperam
será o reino da felicidade.

José Luis Descalzo

A Idade

Falou e disse um pássaro
dois sóis, uma pequena estrela.
Falou para que calássemos
e disse amor, penúria,brevidade.
E disse disse disse
a idade da eternidade.

Carlos Nejar 
In Melhores Poemas

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Caio Fernando Abreu

Minha homenagem à esse grande escritor, que se fosse vivo
estaria hoje completando 63 anos.
Nascido em Santiago, Rio Grande do Sul, CAIO foi escritor,jornalista e dramaturgo.

Sim, existir é incompreensível e excitante 
 Caio Fernando Abreu

domingo, 11 de setembro de 2011

Ao vento

Tela de Richard Emil  Miller

Fica comigo, mas não posso
pedir ao vento 
que sopre ao alcance de
meu ouvido,
ou à terra que abençôe meus 
segredos contigo –
nem mesmo da luz querer ouso
que se detenha em meu abrigo.
Quando os dados lançados,
e até meu silêncio, 
contra toda certeza parece 
que conspiram 
- e caso os dedos do mundo
em suas recurvas unhas nos firam -
releva, e fica comigo: 
os anjos sabem mais alto 
daquilo em que insisto, 
do que preciso.

Fernando Campanella

Duas duzias de coisinhas à toa

Tela de Don Hatfield

Duas dúzias de coisinhas à-toa que deixam a gente feliz

Passarinho na janela, pijama de flanela, brigadeiro na panela.
Gato andando no telhado,cheirinho de mato molhado,disco antigo sem chiado.
Pão quentinho de manhã, dropes de hortelã, grito de Tarzan.
Tirar a sorte no osso, jogar pedrinha no poço, um cachecol no pescoço.
Papagaio que conversa, pisar em tapete persa, eu te amo e vice-versa.
Vagalume aceso na mão, dias quentes de verão, descer de corrimão.
Almoço de domingo, revoada de flamingo, herói que fuma cachimbo.
Anãozinho de jardim, lacinho de cetim, terminar o livro assim.

Otávio Roth

sábado, 10 de setembro de 2011

Fragmento

Tela de George Dunlop Leslie


‎"Pergunto-te em que reino estiveste de noite.
 E a resposta é: estive no reino do que é livre,
 respirei a magna solidão do escuro e debrucei-me à beira da lua.
 Noite alta fazia tal silêncio.
 Igual ao silêncio de um objeto pousado em cima de uma mesa
: silêncio asséptico de "a coisa". 
Também existe grande silêncio no som de uma flauta:
 esta desenrola lonjuras de espaços ocos de negro silêncio
 até o fim do tempo."

Clarice Lispector

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Pequeno cosmo

Tela de George Dunlop Leslie


Ah, rosas, não, nem frutos, nem rebentos.
Horta e jardim sobejam nestes versos
De consonâncias velhas e bordões.
Navegante dum espaço que rodeio
(Noutra hora diria que infinito),
É por fome de frutos e de rosas
Que a frouxidão da pele ao osso chega
.Assim árido, e leve, me transformo:
Matéria combustível na caldeira
Que as estrelas ateiam onde passo.
 Talvez, enfim, o aço apure e faça
Do espelho em que me veja e redefina.

José Saramago

Aprendamos o rito

Tela de François Fressinier
Põe na mesa a toalha adamascada,
Traz as rosas mais frescas do jardim,
Deita o vinho no copo, corta o pão,
Com a faca de prata e de marfim.

Alguém se veio sentar à tua mesa,
Alguém a quem não vês, mas que pressentes.
Cruza as mãos no regaço, não perguntes:
Nas perguntas que fazes é que mentes.

Prova depois o vinho, come o pão,
Rasga a palma da mão no caule agudo,
Leva as rosas à fronte, cobre os olhos,
Cumpriste o ritual e sabes tudo.

José Saramago

Palma com palma

Palma com palma,
Coração e coração, e gosto de alma
No mais fundo do corpo revelado.
Já a pele não separa, que as palavras
São espelhos rigorosos da verdade
E todas se articulam deste lado.
Linhas mestras da mão abram caminho
Onde possam caber os passos firmes
Da rainha e do rei desta cidade.

José Saramago
Tela de Ariana Richards
Tela de Severin Nilson

Murmurios do vento

Que murmúrio de vento, 
que dourados cantos 
de ave pousada em altos ramos dirão, 
em som, as coisas que, calados, 
no silêncio dos olhos confessamos?

Saramago

sábado, 3 de setembro de 2011

Primavera

Tela da Diane Leonard

"...A PRIMAVERA chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome,
nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la.
A inclinação do sol vai marcando outras sombras;
e os habitantes da mata, essas criaturas naturais 
que ainda circulam pelo ar e pelo chão, 
começam a preparar sua vida para a primavera que chega.

Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra,
nesse mundo confidencial das raízes, 
— e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes
e a alegria de nascer, no espírito das flores..."

Cecília Meireles

Roteiro de um paraíso privado

 Emma Florence Harrinson
Roteiro para um paraíso privado

Deitar-se alguma vez nos sulcos
do sono da noite anterior,
reconhecendo como um felino doméstico
o cheiro das nossas mantas. Não
lavar os dentes e sobretudo esquecer
de baixar as persianas. Coleccionar
pontas sucessivas de cigarros, jornais
de muitos ontens e rimas
de livros lidos só três paginas. Não
endireitar a curva daquele candeeiro,
deixar as gavetas abertas
com colírios, comprimidos e roupas
à vista. Amontoar em cima da cómoda
brincos ímpares, perfumes sem tampa, pequenos espelhos
quebrados, alfinetes, cartas, rascunhos
e chávenas de chá servido há dias, deixar
calar-se o CD com os lieder de Schumann
afastando os sapatos de muitos caminhos
e a roupa de todas as horas

Inês Lourenço

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Primavera

Um pedaço de céu caiu na terra:
em tufos fofos de flocos frouxos frívolas hortênsias
volantes como crinolinas fúteis
desmancham-se em reverências
ou passeiam como sombrinhas lindamente inúteis
ou pousam empoadas de ar como pompons.

O céu é um grande linho muito passado no anil
que o vento enfuna num varal de vidro.
Ele é o toldo azul de um bazar
onde brinca vestido de ar
um clown elástico, ágil e sutil.

Guilherme de Almeida

fragmento


“Se, como o amor,
o desejo se alça à plenitude,
como desejo o amor é cada vez mais suspirar:
lamento, ânsia, nostalgia e
vem depositar-se nessa palavra que
apenas a língua portuguesa teve o engenho
e a arte de inventar, saudade”.


Marilena Chauí