A emoção é como um pássaro,
quando se prende já não canta

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A rosa

Uma sépala, pétala, um espinho,
Numa simples manhã de verão_
Um frasco de orvalho _
Uma abelha ou duas _
Uma brisa_um bulício nas árvores _
... E eis-me rosa!

Emily Dickinson

Da voz das coisas

Tela de Guy Demeter

Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho.

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.

Fiama Hasse Pais Brandão

No silêncio dos olhos

Pierre Bonnard
Em que língua se diz, em que nação,
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos?

José Saramago

Aqui a pedra cai

Tela de Yuri Klapov

 Aqui a pedra cai com outro som
Porque a água é mais densa, porque o fundo
Tem assento e firmeza sobre os arcos
Da fornalha da terra.
Aqui reflete o sol, e tange à superfície
Uma ruiva canção que o vento espalha.
Nus, na margem, acendemos convulsos
A fogueira mais alta.
Nascem aves no céu, os peixes brilham,
Toda a sombra se foi, que mais nos falta?

José Saramago

Amo as açucenas

Amo as açucenas na branquíssima
vertigem do princípio do mundo.
Ninguém pode amá-las assim
nas madrugadas de linho e de nácar.
Ninguém subiu as vertentes da colina
mais íngreme com um vestido de noiva
amarrado ao corpo.
O abandono recortado no ar.
Os desejos entorpecidos na alvura dos seios.
Os guizos das cabras reclamando o cio.
A cera das colmeias na greta dos lábios.
O fascínio da luz a incidir nas hastes mais altas.

Graça Pires

Chá para as borboletas



Tela de Laura Knight

Janela - espelho meu.
Fragrância de almíscar selvagem
me violenta.
Menino com aura violeta.
Jovem com juba desgrenhada.
Velocidade lenta.

Garganta do poço este túnel
cinza, onde trafego dias.
Penso na infância, sombra
dos eucaliptos, recanto secreto

onde eu servia chá às borboletas.

Bárbara Lia

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Estações

Tela de Vladimir Mukhin
Aprendi os cheiros
Do alecrim e da hera
E ao azul do céu
Chamei Primavera.

Encontrei um fruto
Na concha da mão
E à sede da água
Dei um nome: Verão.

Descobri o sol com olhos de sono,
À tristeza das folhas dei o nome de Outono
Aprendi os modos do bico mais terno:
Um cão de peluche
Com o frio do Inverno.

Juntei as estações
Com pés de magia
E à soma das quatro
Chamei poesia.

José Jorge Letria

Deus sorrindo na varanda


.
O quintal de Deus é o céu.
Um paraíso em uma ilha.
Alcançaremos quando formos náufragos.
.
Aguaçal encoberto de dor,
nascituro rompendo em harmonia a eternidade
.
- Deus sorrindo na varanda

Bárbara Lia

Serena

Richard Johnson
Essa ternura grave
que me ensina a sofrer
em silêncio, na suavi-
dade do entardecer,
menos que pluma de ave
pesa sobre meu ser.

E só assim, na levi-
tação da hora alta e fria,
porque a noite me leve,
sorvo, pura, a alegria,
que outrora, por mais breve,
de emoção me feria.

Henriqueta Lisboa

O Vento


A grande amendoeira consente que balancem
suas largas folhas transparentes ao sol.
Misturam-se uns aos outros, rápidos e frágeis,
os longos fios da relva, lustrosos, lisos fios verdes.
Frondes rendadas de acácias palpitam inquietamente
com o mesmo tremor das samambaias
debruçadas nos vasos.
Fremem os bambus sem sossego,
num insistente ritmo breve.
O vento é o mesmo:
mas sua resposta é diferente em cada folha.
Somente a árvore seca fica imóvel,
entre borboletas e pássaros.
Como a escada e as colunas de pedra,
ela pertence agora a outro reino.
Seu movimento secou também, num desenho inerte.
Jaz perfeita, em sua escultura de cinza densa.
O vento que percorre o jardim
pode subir e descer por seus galhos inúmeros:
ela não responderá mais nada,
                                                      hirta e surda, naquele verde mundo sussurrante.

Cecília Meireles




segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Melancholia

Tela de Robert Hagan
Um amigo me ensinou a contemplar "o agora"
a respirar o ventilar das asas dos beija-flores
ao redor da fogueira seu silêncio alumbrado -
a lembrar a lenta passagem do rio de estrelas
estanca! gritaram seus olhos cor das oliveiras
o sagrado mora naquela folha e ela despenca
apodrece re (nasce) qual bromélia luxuriante
diz: sorria! andrômeda te espera e entre uma
e outra galáxia vais vibrar em orgasmo puro
contempla! pois nem a lágrima do beija-flor
vai lavar a ira dos desafetos aceite este fardo
nem o anjo que ilumina tua vida - puro afeto
ou o amor em estado bruto daquele dezembro
nem precisa ver "a árvore" ou a "melancholia"
para seguir até o fim na maré dolorida / cuore
magoado de deus que secou de amar desata
raios planetas e profecias em nossas cabeças

Bárbara Lia

O que a onda diz?

Tela de Madrazo e Garreta
O que a onda diz
ao cão sentado
babando moluscos
e saudades?
Como rasgar a onda
sem cicatrizar em azul?
Beber a ardência seminal
de amantes afogados
como quem engole
segredos guardados
entre debruns
de ondas
em seu giz rendado.

Bárbara Lia

Anatomia

Tela de Derly Tatiane
Nos demais - eu sei,
qualquer um o sabe
- O coração tem domicílio
no peito.
Comigo
a anatomia ficou louca.
Sou todo coração -

Maiakóvski

Interiores

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A vida é substancialmente o que não se vê. Planta raízes no mais profundo de nós mesmos, no labirinto que, pelos meandros do espírito nos conduz ao jardim mais secreto.

Em 14 de junho de 2.006 fez 20 anos que Jorge Luis Borges, arquiteto de interiores, reencantou-se, anjo barroco que sempre foi. Resta-nos o inestimável legado literário, tecido em contos fantásticos, inquietações metafísicas, um saber repleto de sabor.

A literatura sobrevive a seus autores quando feita de interiores. A perenidade do teatro grego e também de Guimarães Rosa, Dante, Cervantes, Shakespeare, Púchkin, Dostoiévski, Eliot, Camus ou Machado de Assis reside no talento capaz de fazer da pena o estilete a penetrar interiores e pinçar, lá do fundo, os fantasmas que habitam os porões da alma humana.

Somos interiores exilados nessa sociedade do óbvio, onde tudo flutua à superfície, dejetos numa poça d'água infecta. O entretenimento, disfarçado de cultura pós-moderna, analfabeto em matéria de espiritualidade, objetiva e reifica-nos o ser, vulnerável ao estupro do que há em nós de mais essencial. As linhas do novo carro são tão sensuais quanto as da modelo exposta no sofisticado açougue do voyeurismo. Artistas transformam-se em meros acessórios de produtos, o político vale pelo visual, rompe-se o limite entre o necessário e o supérfluo.

Agora, tudo é produzido: O sorriso do empresário, o gesto do atleta, a postura da deputada. Devassados em nosso interior, deambulamos como ébrios pelas veredas da vida, cegos pelo excesso de luz. Há tantos ruídos que nossos ouvidos já não distinguem sons. Onde o murmurar do riacho, o gemido das pedras lavadas pela cachoeira, o rumor inconsolável da maré retornando suas ondas no limite da praia, o farfalhar das árvores escovadas pelo vento?

Perdemos a memória de nossos sabores ancestrais: O cheiro da calda açucarada, do pão quente e do assado gordurosamente temperado. Condenados ao fast-food, qual filme de Chaplin somos rápidos em tudo. Amamos sôfregos, trabalhamos ansiosos, conversamos gagos de preocupações, vivemos aprisionados pelo ritmo alucinado dessa sociedade que se vangloria estupidamente de ser competitiva. No horizonte oco sobressai o medo de que a doença nos atinja, os filhos sejam proscritos do futuro, o dinheiro escasseie, a violência nos vitime. Medos, no lugar de esperanças.

Quem edificou esta Torre de Babel? Borges, que na falta dos olhos para enxergar tanto aguçou o espírito, diria: nossa cegueira pontilhada de ilusões consumistas, de sonhos inatingíveis, de ambições ególatras. Aos 78 anos de idade, numa conferência na Universidade de Belgrano sobre "A imortalidade", ele acentuava que "se o tempo é infinito, em qualquer momento estamos no centro do tempo".

Saber disso é uma coisa. Vivê-lo é realizar a proposta de Teillard de Chardin: centrar-se em si mesmo para descentrar-se nos outros e, assim, concentrar-se em Deus.

A arte de semear estrelas

Frei Betto

Ed. Rocco 2007

domingo, 22 de janeiro de 2012

História de gatos

Gosto de ouvir histórias de gatos. Quanto mais autista o gato, melhor. Autista no sentido de apegado à sua própria concepção de realidade. Gatos que se escondem atrás da cortina, sem ligar se o rabo ficou de fora. Ou que ficam debaixo da cama o dia inteiro, no esconderijo de sempre, que nem é mais esconderijo, uma vez que só falta bater o ponto, de tanto que o lugar faz parte de sua rotina.

Gosto também dos gatos com TOC, transtorno obsessivo compulsivo. Aqueles que só andam na quina das mesas, que fazem seu ninho numa cadeira quebrada ou em cima de um eletrodoméstico sem uso. Gatos que andam diferente, adeptos dos silly walks dos Monty Pythons. De algum modo, eles sabem que estão sendo observados, mesmo que não tenha mais ninguém no mesmo cômodo.
Gatos me lembram de como eu deveria ter sido, se tivesse me concentrado mais em mim, em vez de abrir mão do meu jeito de ser para agradar os outros. Não me entendam mal: a gente deve fazer concessões, sim, se elas forem em benefício de quem a gente ama. Mas não podemos ceder nas pequenas coisas, nas pequenas manias inofensivas que são o nosso jeito de estar no mundo.

Álvaro Bastos

domingo, 1 de janeiro de 2012

Tô só

Tela de Cândido Portinari

Vamo brincá de ficá bestando e fazê um cafuné no outro
 e sonhá que a gente enricô e fomos todos morar nos Alpes Suíços
 e tamo lá só enchendo a cara e só zoiando?
Vamo brincá de morrê, porque a gente não morre mais
 e tamo sentindo saudade até de adoecê?
 E que a alma é de uma terceira matéria, uma quântica quimera,
 e alguém lá no céu descobriu que a gente não vai mais pro beleléu?
E de luar? Que é aquilo de vestir um véu todo irisado e rodar, rodar...
Vamo brincá de ninho? E de poesia de amor?

e tudo mais serei

para que seja leve

meu passo

em vosso caminho.*

Vamo brincá de autista?
 Que é isso de se fechá no mundão de gente
 e nunca mais sercronista?
Tô brincando de ilha.

Hilda Hilst