Interiores
A vida é substancialmente o que não se vê. Planta raízes no mais profundo de nós mesmos, no labirinto que, pelos meandros do espírito nos conduz ao jardim mais secreto.
Em 14 de junho de 2.006 fez 20 anos que Jorge Luis Borges, arquiteto de interiores, reencantou-se, anjo barroco que sempre foi. Resta-nos o inestimável legado literário, tecido em contos fantásticos, inquietações metafísicas, um saber repleto de sabor.
A literatura sobrevive a seus autores quando feita de interiores. A perenidade do teatro grego e também de Guimarães Rosa, Dante, Cervantes, Shakespeare, Púchkin, Dostoiévski, Eliot, Camus ou Machado de Assis reside no talento capaz de fazer da pena o estilete a penetrar interiores e pinçar, lá do fundo, os fantasmas que habitam os porões da alma humana.
Somos interiores exilados nessa sociedade do óbvio, onde tudo flutua à superfície, dejetos numa poça d'água infecta. O entretenimento, disfarçado de cultura pós-moderna, analfabeto em matéria de espiritualidade, objetiva e reifica-nos o ser, vulnerável ao estupro do que há em nós de mais essencial. As linhas do novo carro são tão sensuais quanto as da modelo exposta no sofisticado açougue do voyeurismo. Artistas transformam-se em meros acessórios de produtos, o político vale pelo visual, rompe-se o limite entre o necessário e o supérfluo.
Agora, tudo é produzido: O sorriso do empresário, o gesto do atleta, a postura da deputada. Devassados em nosso interior, deambulamos como ébrios pelas veredas da vida, cegos pelo excesso de luz. Há tantos ruídos que nossos ouvidos já não distinguem sons. Onde o murmurar do riacho, o gemido das pedras lavadas pela cachoeira, o rumor inconsolável da maré retornando suas ondas no limite da praia, o farfalhar das árvores escovadas pelo vento?
Perdemos a memória de nossos sabores ancestrais: O cheiro da calda açucarada, do pão quente e do assado gordurosamente temperado. Condenados ao fast-food, qual filme de Chaplin somos rápidos em tudo. Amamos sôfregos, trabalhamos ansiosos, conversamos gagos de preocupações, vivemos aprisionados pelo ritmo alucinado dessa sociedade que se vangloria estupidamente de ser competitiva. No horizonte oco sobressai o medo de que a doença nos atinja, os filhos sejam proscritos do futuro, o dinheiro escasseie, a violência nos vitime. Medos, no lugar de esperanças.
Quem edificou esta Torre de Babel? Borges, que na falta dos olhos para enxergar tanto aguçou o espírito, diria: nossa cegueira pontilhada de ilusões consumistas, de sonhos inatingíveis, de ambições ególatras. Aos 78 anos de idade, numa conferência na Universidade de Belgrano sobre "A imortalidade", ele acentuava que "se o tempo é infinito, em qualquer momento estamos no centro do tempo".
Saber disso é uma coisa. Vivê-lo é realizar a proposta de Teillard de Chardin: centrar-se em si mesmo para descentrar-se nos outros e, assim, concentrar-se em Deus.
A arte de semear estrelas
Frei Betto
Ed. Rocco 2007